Crônica

Caras-Pintadas, ECO-92 e D-20… No questionário analógico, a memória não tem vez

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Caras-Pintadas, ECO-92 e D-20… No questionário analógico, a memória não tem vez

Você sabe o que estava fazendo no dia 2 de julho de 1992, mais especificamente às 20h55min de uma quinta-feira de lua nova? Eu, graças a um churrasco na casa dos meus pais, duas semanas atrás, sei direitinho. E posso provar.

Depois da maminha do Oda, e da maionese e do pudim da Angela, encarnei o papel de boa filha à casa torna e fucei geral nas caixas de fotografias da infância. Deparei então com um caderno de capa dura, encapado com uma página de classificados de jornal, onde se lê, em palavras coloridas, recortadas de revistas: natureza, escola, desejo, eu te amo e lua-de-mel, com um smack, isso mesmo, um beijo de batom bem bagaceiro, eca. Abri, claro. 

Questionário Tatiana Borges da Cruz R. Marcílio Dias 1368/404 (eu lembrava desse número e não lembrava que lembrava) Centro – NH Responda tudo com sinceridade. Se você não souber ou quiser manter segredo não minta deixe em branco 

Tudo assim, sem vírgula. Questionário. Sim. Jovens leitores. Na minha pré-adolescência, pré-histórica, pré-template de Stories, nós, jovens dos anos 1990, colhíamos likes e alimentávamos nosso ego por meio de outros recursos, analógicos mesmo: um simples caderno, com perguntas no alto de cada página, que a gente fazia circular entre colegas de escola, natação, inglês, whatever, para, no fundo no fundo, saber quem gostava da gente. Na real mesmo a gente queria saber se, na reunião dançante do aniversário da Luiza, Roberta, Moema, quem quer que seja, o guri X ou Y poderia nos tirar pra dançar. Carro, novela preferida, ídolos… (tsc tsc)? Na verdade, mas na verdade mesmo, tudo que importava pra gente, com 12 anos, estava registrado na longínqua pergunta de número 59: “De quem você gosta?”, logo depois da bizarra 58: “Você tem inimigos?” e antes da preocupante 60 “O que achas da mãe dele?”.

(Pausa dramática agora pois coberta de vergonha)

OK, retornando, do alto dos meus 44, olhando de longe, mais investigadora científica, tenho pra mim que os questionários circulavam entre nós como um recurso de comunicação diretamente conectado ao grande evento deste curto período de transição entre infância e adolescência: a reunião-dançante. Queria aqui manifestar um enorme RIP para esse incrível convescote que deve ter encontrado na minha geração seus últimos adeptos, pois meu irmão e sua turma (3 anos mais novos), nunca repetiram o feito. 

Na minha reunião-dançante de 10 e 11 anos, meninos e meninas dançavam com braços retos, mãos sobre os ombros uns dos outros, em uma vigilante separação de corpos (nos amamos mas nos odiamos). Em 1991, minha mãe me ajudou e organizamos a melhor das reuniões-dançantes do colégio na sala lá de casa, com papel escrito “Gatinhos” colado na parede do sofá de dois lugares e outro escrito “Gatinhas” no estofado maior. Tinha torta de bolacha, canudinho de carne moída e maionese, pastel, gelatina em potinho de plástico, as mães da turma que eram amigas da minha mãe entravam e se dirigiam à varanda contígua à sala, dando-nos uma certa privacidade. 

Eram meus 12 anos e foi a primeira vez que instituímos a dança bem colada na turma do Colégio Osvaldo Cruz de NH, revolucionando os hormônios, as vassouras (procurem por dança da vassoura pois quem tem referência tem tudo) e acelerando a circulação dos questionários para o bom serviço de informação que não encontrava palavra falada, só escrita mesmo, pois ninguém beijava ninguém, era tudo uma concentração de energia que criava caráter.

Em 1992, as reuniões-dançantes da minha turma estavam declinando, pois, dos 13 em diante, pessoal começava a beijar na boca, inaugurando outro evento marcante: o verdade ou consequência. No dia 2 de julho daquele ano, eu respondia, pois, o que viria a ser o meu último questionário, e, meses adiante, passaria para outra fase, a adolescência de quem perdeu o que se chama hoje de BV (boca virgem). Mas, naquele dia, uma quinta-feira de lua nova, eu nem sabia disso e me concentrava em responder perguntas bobinhas que eu mesma criei, do tipo, “você se acha bonito (a)?”, perguntas do tipo marqueteiras como “qual carro você prefere?” ou “qual presente gostaria de ganhar?”, até perguntas do tipo históricas “o que você acha do Collor?” ou “o Brasil tem jeito?”, e tudo isso, olhando na totalidade, agora, é eu, minha casa e meu mundo, tudo junto, ao mesmo tempo.

Eu tinha 12 anos, morava em Novo Hamburgo, meus pais tinham votado no “dois patinhos na lagoa vote Afif 22 quack quack” e depois no Collor na eleição de 1989 embora eu tenha cantado o “Lula lá brilha uma estrela” e a gente só falava em parlamentarismo e presidencialismo (monarquia era piada) nos debates de escola (eu sempre queria ser do grupo do parlamentarismo, em casa e até no almoço na vó, porque tinha passado no Congresso a aprovação para a criação de um plebiscito para o ano seguinte. 

Só dava isso na roda de conversa, além do Collor, do PC Farias, além do Evaristo França, o motorista do Collor que abriu a boca dizendo que ele mesmo pagava as despesas pessoais do presidente com o dinheiro da conta fantasma do PC. O movimento dos Caras-Pintadas ainda nem tinha ganhado as ruas do país, e eu já nutria um ódio tremendo pelo corrupto da Casa da Dinda, acompanhada, ainda bem, pelos demais assinantes do questionário, que se referiam a Collor com adjetivos bem maduros como “um cocô”, “um chato”, “uma droga”. 

E se o Brasil tinha jeito? Bom, em julho, estávamos elaborando o fato de termos sediado um dos maiores eventos ambientais do planeta no nosso Rio de Janeiro, a ECO-92, e tudo nos apontava esperança, pactos globais, controle nas emissões de CO2, e a gente respondia, todos, em coro, “sim, tem jeito sim”.

Em 2 de julho de 1992, enquanto o Jornal Nacional repercutia as notícias do dia, inflação a 22,7%, Bush negando o envio de tropas para a Bósnia, o motorista jogando mais merda no ventilador do presidente, enquanto a hiperinflação comia tudo ao redor, dentro desse delírio de país, que mais parecia filme, eu aguardava ansiosamente a estreia de Anos Rebeldes, na Globo, e já apontava no meu questionário Cássio Gabus Mendes e Cláudia Abreu como artistas preferidos, bem depois de escrever três vezes, em caixa alta, CAPRICHO CAPRICHO CAPRICHO como revista preferida, mesmo tipo de grafia para Spending my Time, do Roxette, como a melhor música jamais criada, até dar uma derrapada na maionese mencionando D-20 e Tempra como carros dos sonhos e Deus como o ídolo máximo da minha vida, ao lado do papai e da mamãe, me devolvendo uma outra Tatiana, bem diferente do que a memória editou e salvou.

Sim, eu sei o que eu tava fazendo exatamente em um horário específico em um dia específico de um ano em que o vôlei masculino se consagrou na Espanha com a medalha de ouro, ano em que  111 presos foram massacrados em Carandiru, ano do impeachment, eu sei o que eu fazia numa hora específica de um dia específico de 1992, no ano em que a Daniela Perez foi morta a tesouradas, no ano em que o Xou da Xuxa acabou. Eu sei porque anotei em um caderno, e esse caderno minha mãe guardou. 

Ontem eu fiquei horas vasculhando meu celular para achar uma foto das minhas filhas bebês, minhas meninas da Geração Z, e me arrepiei pensando que a infância delas está numa nuvem do Google Photos, que os registros do que elas gostam, sonham, odeiam, das dores que padecem, que tudo isso elas preenchem em templates do Sua Vez nos Stories de uma rede social que pode explodir, morrer, fazer tudo desaparecer. 

A memória é feita de material sensível. Com meu questionário na mão, naquele dia, no sofá da sala da mãe, em Novo Hamburgo, eu fiquei paralisada, meio catatônica e envergonhada por algumas das expressões dos meus 12 anos impressas em caneta azul no caderno da transição para a juventude. Eu queria uma D-20. Meu deus. Se minha mãe me falasse isso, eu diria que era mentira. EU QUERIA UMA D-20. Tá aqui, no questionário. No tribunal dos questionários analógicos, esses salvos pelas mães analógicas, no tribunal dos questionários, as memórias de filha não têm vez. Vou começar a dar print nesses stories, mandar pra gráfica e guardar tudo na minha caixinha de memórias de mãe analógica. Preparem-se, filhas da Geração Z.

SAIBA MAIS
O que você estava fazendo?

1992 na música
Vento Ventania: Biquíni Cavadão.
Passageiro: Capital Inicial.
Se: Djavan.
Rio 40 graus: Fernanda Abreu.
Borbulhas de Amor: Fagner. …
O rock das aranha: Ultraje a Rigor. 
Cigana: Raça Negra.
Brincar de Ser Feliz: Chitãozinho e Xororó.

Top filmes de 1992
O Óleo de Lorenzo. 
Perfume de Mulher. 
Aladdin.
Os Imperdoáveis. 
Chaplin.
O Guarda-Costas. 
Cães de Aluguel. 
Questão de Honra.

Carros mais vendidos
Posição Modelo 1992
1 VW Gol 135.668
2 Fiat Uno 86.898
3 Chevrolet Monza 53.505
4 Chevrolet Kadett 41.933


Tatiana Cruz é jornalista e poeta. 

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