Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Politizar a tragédia

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Politizar a tragédia Governador Eduardo Leite e prefeito Sebastião Melo em unidade do Dmae, em Porto Alegre | Foto: Mauricio Tonetto / Secom

Uma baleia encalhada na praia. Um ser nativo da água preso na parte seca da areia. Uma baleia morta! – é o primeiro pensamento que ocorre. Uma baleia na parte seca é uma baleia em perigo. Mas se essa baleia for uma livraria na Rua da Praia, tanto melhor que esteja na parte seca. Uma Baleia a salvo, em terra firme. Firme e seca.

*

Antes da água do Rio Guaíba invadir o Centro Histórico de Porto Alegre, eu estava planejando escrever sobre o filme Sem coração, de Nara Normande e Tião, que estava em exibição nos cinemas da cidade em sua versão longa-metragem. No cartaz, aparece uma baleia cachalote imensa deitada sobre a grama, em meio aos coqueiros, perto da praia. No filme, essa imagem faz parte de um sonho. A baleia reaparece mais adiante na areia da praia, deitada na mesma posição, só que dessa vez, todos estão vendo aquele bicho surreal encalhado ali. As duas protagonistas se aproximam e confidenciam uma à outra que ambas tinham sonhado com aquela baleia.

No curta-metragem (que deu origem ao longa) de 2014, o cartaz mostrava o desenho de uma baleia dentro de uma piscina vazia. Essa cena aparece no longa também, mas ganha outros contornos menos lúdicos do que no cartaz minimalista e delicado desenhado em preto e branco. Contar mais do que isso seria dar spoilers demais. O que eu quero é apontar uma rima: uma baleia na parte seca é uma baleia em perigo.

*

Na segunda-feira, quando a prefeitura emitiu o alerta de evacuação dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus, eu estava na rua. Tinha ido até a livraria Bamboletras carregar o celular. Na volta, atravessei a Cidade Baixa com muitas ruas já alagadas. Enquanto isso, a prefeitura emitiu mais um alerta: algumas ruas do Centro Histórico poderiam sentir o efeito da inundação na Cidade Baixa, entre elas a Rua Demétrio Ribeiro, onde moro. Nesse caminho para casa, por volta das 14h, duas coisas me chamaram a atenção.

A primeira foi a quantidade imensa de pessoas caminhando apressadas em debandada pela Demétrio em direção à Cinemateca Capitólio, na esquina com a Borges, carregando crianças e mochilas. E essas pessoas eram, em sua maioria, mulheres.

A outra foi a quantidade de bares abertos na Cidade Baixa e no Centro com mesas na calçada e pessoas tomando cerveja àquela hora de uma segunda-feira em meio a um alerta de inundação na região. E essas pessoas eram, em sua maioria, homens.

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Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quando está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Esses são teus filhos? – São.

(Wislawa Szymborska)

*

A única quadra da Rua dos Andradas – popularmente conhecida como Rua da Praia – que não inundou foi a que fica entre as ruas Vasco Alves e General Portinho, em frente à Praça do Tambor.

Conversando com uma amiga arquiteta que conhece bem a região e mora ali, ouvi que aquela quadra é uma espécie de “calombo topográfico”, ou seja, um pequeno trecho bem mais alto do que o seu entorno. No entanto, isso que ela chama de “calombo topográfico”, eu chamo de milagre.

A enchente histórica que engoliu boa parte de Porto Alegre depois que o Rio Guaíba transbordou de forma inédita na última sexta (03/05) não chegou na Livraria Baleia. Essa é a notícia: a enchente que não houve. Qualquer professor de jornalismo me diria que isso não é notícia. Mas como o meu negócio aqui é literatura, é isso que temos: eu vim contar sobre a enchente que não houve. 

Uma Baleia a salvo, em terra firme. Firme e seca.

*

Entre os diversos pronunciamentos das autoridades (in)competentes sobre a enchente nos últimos dias, houve uma fala recorrente, em comum nos discursos do Governador do estado e do Prefeito da capital, que não pode passar batida: “Não é hora de procurar os culpados” – disseram os culpados. 

E outra frase antológica foi “não se deve politizar a tragédia”. E daí eu lembrei de Wislawa Szymborska – prêmio Nobel de Literatura – mais uma vez:

Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.

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