Juremir Machado da Silva

Despejo na chuva

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Despejo na chuva Despejo ocorreu sem decisão judicial apresentada ou permissão de acesso à Defensoria Pública. Foto: Vinícius Cassol/MLB

A Brigada Militar foi obrigada a cumprir ordem de despejo num dia de chuva contra flagelados que ocuparam um prédio público sem uso no centro de Porto Alegre. Toda vez que leio algo assim perco o prumo. Os cenários para explicar esse acontecimento são igualmente desoladores. Decisão judicial ou o que mesmo? Se foi ordem judicial, como confiar numa justiça que teve durante muito tempo auxílio-moradia indiscriminado, sob alegação de que era obrigada a aceitar por ser legal e por uma questão de isonomia com o resto do país, independentemente de o juiz ter casa própria na cidade de seu trabalho, casa na praia, na serra e até de sobra? Esses penduricalhos foram inventados para aumentar os salários das elites judiciárias e, de quebra, não pagar imposto de renda. Aí o magistrado que vive em condição nababesca manda jogar na chuva quem não tem onde morar na base do cumpra-se a lei enquanto ele vê uma série na Netflix.

Justiça de verdade precisa ser legal, moral, ética e justa. O ativismo judicial ensina que legal é o que o judiciário decide que é em última instância. Logo, não existe letra fria da lei, mas interpretação da lei, ampla, geral e quase irrestrita. Depende de quem julga. Cada cabeça uma sentença. Essa máxima da sabedoria popular ganhou dimensão hermenêutica na ciência jurídica brasileira. Para desespero de uma mente privilegiada como a de Lênio Streck, onde o observador comum vê um navio, um juiz pode enxergar uma limusine, ou, o que é mais frequente e grave, onde se vê necessidade e desespero, o juiz pode ver abuso, invasão e urgência de reintegração de posse sob a chuva, o frio, mesmo diante da ociosidade de um prédio público.

Justiça no Brasil, talvez até mais do que outros lugares, tem cor, classe, gênero. Durante mais de 350 anos o Brasil se construiu um amplo edifício legal para justificar e legitimar a escravidão. A lei de 1831 que proibia o tráfico de escravizados foi cotidianamente ignorada, tanto que precisou de uma segunda edição, com novo nome, em 1850. Os escravizados entrados no país depois de 1831 e seus descendentes eram livres, mas continuavam tendo donos, até que juízes intrépidos, num ativismo chocante para os donos do poder da época, começaram a aplicar a lei que não havia pegado, feita para inglês ver. Na época, ativismo era aplicar a lei, não a interpretar livremente.

Matéria da Matinal informou que “de acordo com a assessoria de comunicação da polícia, o despejo de cerca de 200 pessoas deu-se ‘em razão do perigo à segurança das pessoas na edificação, que já havia sido interditada por apresentar risco de queda de marquises’ – entretanto, ocupantes foram enfileirados debaixo justamente dessa cobertura, logo depois do esvaziamento do prédio público, que fica no Centro Histórico, entre as avenidas Júlio de Castilhos e Mauá, na esquina com a rua Carlos Chagas”. Se o despejo não ocorreu por decisão judicial, alguma coisa está ainda mais fora da ordem. Não vi grandes reportagens na velha imprensa sobre o ocorrido. Não deu manchete.

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