Juremir Machado da Silva

Ayrton Senna, morte na pista

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Ayrton Senna, morte na pista Documentário "Senna" | Foto: Divulgação

Correspondente de Zero Hora em Paris, depois de ver o acidente de Ayrton Senna na televisão, comprei passagem para a madrugada do dia 2 de maio. Embarquei para Bolonha antes das 6 horas da manhã. Resgato a seguir dois dos textos que publiquei naqueles dias.

A multidão não se afastou nunca da frente do Instituto de Medicina Legal de Bolonha. Finalmente, às 13h30min, Dott Pintor, procurador da República, reuniu os jornalistas para anunciar que o corpo do piloto brasileiro estava liberado. A autópsia, conforme o primeiro relatório medico, provisório, anunciado pelo doutor Martinelli, revelou que a morte aconteceu na pista logo após a violenta batida contra o muro do circuito de Ímola. Consternação.

A notícia suscitou a ira de todo mundo. Os médicos explicaram que houve, em todo caso, a conservação por algumas horas das funções vitais através do uso de uma aparelhagem sofisticada. A morte cerebral, entretanto, já havia arrancado Senna das corridas. Gerhardt Berger ainda lutava para conseguir um helicóptero que o transportasse de Imola a Bolonha quando recebeu o aviso de que era tarde demais. Conclusão: a direção da prova, os chefes de equipe e todas as autoridades da fórmula 1 esconderam a informação para manter a prova até o fim. Venceu a lei implacável do espetáculo.

Ivan Cappelli, em um debate na televisão pública italiana, justificou a decisão com uma pergunta:

– Quem teria coragem de anunciar aos 110 mil espectadores a interrupção da prova?

Homens sensatos não faltariam para isso. Os médicos também terão de explicar-se mais sobre o que aparecerá para muitos, caso o laudo final confirme a morte instantânea, como um teatro lamentável. A ausência dos pilotos em Bolonha parece provar que o mundo da fórmula 1 é feito mesmo, para além da paixão e do esporte, de ambição, hipocrisia, violência e exibicionismo. Não faltaram torcedores para montar cenários úteis à sede de imagens fortes da televisão. O desaparecimento de Senna serviu para que alguns pudessem aparecer.

Grande demais para morrer

Paris – Herói dos tempos modernos, Ayrton Senna, símbolo da era do esporte espetacular, marcou com a vida e a morte homens e mulheres de todos os continentes. Mesmo os grandes intelectuais, normalmente avessos ao culto das estrelas esportivas, dobraram-se diante do carisma, do talento e do brilho do brasileiro, transformado em cidadão e ídolo do mundo. Do Japão aos Estados Unidos, do Cambodja à França, todos choraram por Senna.

Claude Lefort, filósofo francês de renome internacional, emocionou-se com a tragédia do piloto da Williams. A historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco exclamou: “O Brasil, com razão, não pode pensar em mais nada, nestes dias, que em Ayrton Senna”. O filósofo Gilles Lipovetsky, autor de O Império do Efêmero, analisou longamente para a televisão francesa (FR3), o fenômeno Senna.

Para Lipovetsky, o esporte tomou o lugar da política e da revolução na simbologia contemporânea. Passou a época em que os homens mitificados eram os arautos de uma nova sociedade ou do conhecimento total. Na era da informação global, marcada pelos meios de comunicação de massa, os heróis ultrapassam as fronteiras nacionais e seduzem pela capacidade de superação pessoal. Representam o desejo, a ousadia, a coragem e o movimento. Senna aliou trabalho obsessivo, paixão e competência.

Cada telespectador podia projetar-se com ele, jovem, rico e charmoso, em um universo de esperança, de alegria, de conquistas e de vitórias. O esportista, explicou Edgar Morin, que escreveu um clássico chamado As Estrelas, fascina por não pedir nada: não prega nenhum evangelho, não busca adeptos para uma causa e não possui uma verdade inatacável. Expõe-se ao olhar, ao risco, ao fracasso e ao sucesso sem cessar. Trata-se de um criador insaciável cuja maior alegria é a cristalização do talento em cada gesto. Eis Ayrton Senna, o genial artista da velocidade. Grande demais para morrer.

Polêmica em torno de mortes não anunciadas

A imprensa francesa continua a criticar duramente as autoridades da fórmula 1. O sério Le Monde acusa: “A Federação Internacional de Automobilismo contenta-se em proteger a circulação nos boxes”. O implacável Libération fustiga: “A morte que teria podido impedir de correr o grand-prix de Imola”.  Mais ainda: “A FIA adota medidinhas”. L’Equipe rende-se à emoção em gigantesca manchete de capa:

“A Ultima Homenagem”.

Para os jornais parisienses o relatório do doutor Ricci sobre a autópsia de Ratzenberger é uma bomba: o piloto austríaco morreu na pista e a notícia foi escondida para evitar a suspensão da prova no dia seguinte. A legislação prevê a interdição de um autódromo para inquérito no caso de um acidente fatal. Le Monde vai além, com um comentário de Alain Giraud intitulado: “O Show antes de tudo”.  Resumo: as medidas da FIA são irrisórias; o dinheiro comanda o circo; a irresponsabilidade garante o espetáculo.

Rei morto, diz o velho dito, rei posto. A FIA nada faz. A morte espreita. A discussão sobre o sucessor de Senna entra na ponta dos pés: Mansell, Prost, Patrese, Warwick, Boutsen ou Herbert? Mansell saiu brigado com a Williams. Difícil. Prost está abalado. A ética, caso exista, deverá impedi-lo. Patrese, que já trabalhou na casa, experiente e livre, é sério candidato. Os três últimos, menos importantes, também, pois teriam, enfim, uma grande oportunidade. Começa-se, como sempre, a falar na herança quando o defunto ainda está quente, mesmo quando se trata de um herói.

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